
Fábio Salvador
Geólogo, Doutor em Engenharia Mineral pela USP, Perito Criminal Federal e Ex-Diretor Técnico-Científico da Polícia Federal.
Em 18 de abril de 2004 foi feita uma perícia criminal incomum no interior do estado de Rondônia, em área de selva fechada na Reserva Indígena Roosevelt. Índios da etnia Cinta-larga chacinaram vinte e nove garimpeiros adultos do sexo masculino com idades variadas, com requintes de crueldade na chamada Grota do Sossego. A Polícia Federal mandou equipe de criminalistas para o local, para caracterizar a dinâmica das ações e contextualizar o porquê da violência extrema. A divulgação ampla do fato pela mídia deu-se às vésperas das comemorações do Dia do Índio.
Diamantes são diminutos, fáceis de serem ocultados e podem ter alto valor unitário. São fonte de cobiça internacional. Muitas vidas humanas continuam sendo perdidas ao redor do mundo na desordem das relações entre trabalhadores artesanais, grandes mineradoras e habitantes tradicionais das regiões com jazimentos ricos. Não é só na África que o diamante alimenta guerras e pobreza. Rondônia é rico em diamantes e em problemas bem parecidos. A legislação mineral e tributária brasileira aplicada à exploração de diamantes não é atual e não é cumprida. Peritos têm que reconhecer e valorar diamantes. Peritos criminais têm também que investigá-lo à luz da criminalística, para orientar inquéritos policiais e processos judiciais.
Em 1963, no que foi chamado de Massacre do Paralelo 11, roubo, estupro, grilagem, assassinatos por envenenamentos e explosões, suborno e torturas impostos a indígenas Cinta-Larga parecem estar na essência do que aconteceu em 2004. Possuidores históricos de vastas áreas das terras do interior brasileiro, os nativos brasileiros nunca conseguiram usufruir para o bem de suas comunidades aquilo que os colonizadores modernos consideram riquezas. Sempre foram atores coadjuvantes de um filme dirigido por mocinhos que escolhem seus bandidos.
Os kimberlitos existentes na Reserva Roosevelt são rochas inequigranulares de origem profunda, contendo diamantes muito peculiares. Foram pouco pesquisados até hoje por brasileiros, desde seu mapeamento na década de setenta pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM). São a origem dos pláceres continuamente explotados de maneira irregular e sem controle por garimpeiros cooptados pelos próprios índios, para a mineração já nada artesanal. Esse regime de parceria sem controle do Estado serve apenas para devastar meio ambiente, enriquecer poucos favorecidos e colocar tensão social em uma região que poderia ser fomentada como polo de desenvolvimento sustentável regional.

O conflito que ocorreu naquela ocasião provocou comoção nacional e internacional, efêmera, como em tantos embates trágicos que atropelam a resignada sociedade brasileira. Índios aculturados liderando tribos isoladas, habitantes de uma das mais cobiçadas áreas minerárias do planeta, cultura garimpeira incontida, grandes empresas de mineração hoje impedidas legalmente de atuar em terras indígenas, políticos regionais mal-intencionados conhecedores da potencialidade da região e órgãos estatais de fiscalização fracos compõem um cenário totalmente inadequado aos interesses nacionais. Isso forma o caldo de cultura adequado para termos repetição de matanças, assaltos à coisa pública, destruição de culturas tradicionais e desperdício de oportunidades de ordenamento da extração mineral no Brasil.
Os diamantes extraídos das margens do Rio Roosevelt são normalmente grandes, multicoloridos, com predominância de tons esverdeados, bem formados e muito valorizados no mercado internacional. Em 2003, o governo brasileiro havia instituído o Sistema de Certificação do Processo de Kimberley (SCPK), através da Lei 10.743, buscando integração com os demais países afetados pela criminalidade associada ao tráfico de diamantes. Os diamantes de Rondônia passaram daí a serem “esquentados” por todo o Brasil.
Muito mais que esquecimento, o que ocorreu com a situação na reserva dos Cinta-Largas é a continuidade falseada da locupletação de poucos, envolta em leniência e desprezo pelo poder público. Exemplo desavergonhado de como conjunturas existentes em rincões do Brasil não são devidamente discutidas, será sempre uma mancha sangrenta na Geologia Forense brasileira e na história de nosso país.
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